#18 - THE SETTLERS, de Louis Theroux
Ou: quando religião, racismo e ódio dão as mãos, nada segura a colonização
Se eu fosse religioso, e curtisse escatologias como os extremistas sionistas, eu diria que vi a cara do demônio. O sorriso nefasto de Daniela Weiss certamente vai me atormentar por um bom tempo depois de ver sua maldade explícita tão graciosamente nas conversas com Louis Theroux, em The Settlers (2025). O documentário do singapurense foi lançado pela BBC no final da semana passada e, como é de se esperar graças 1) ao tema e 2) à própria cobertura nada exemplar que o veículo britânico vem fazendo do genocídio palestino, está causando (e com certeza ainda vai causar) um bocado de barulho, merecidamente. Aliás, barulho é o que mais se precisa neste momento desde o 7 de outubro de 2023, considerando o desequilíbrio de vozes críticas às atrocidades sionistas no jornalismo e na política mainstream.
Antes, uma breve notinha sobre Louis Theroux, o jornalista/cineasta que conduz o filme do começo ao fim — é dele o roteiro e a direção de The Settlers. Theroux começou seu trabalho audiovisual em TV Nation, hoje uma clássica série criada por Michael Moore, que produzir reportagens provocantes com o humor ácido que o consagrou no cinema. Louis, por sua vez, também já faturou alguns prêmios importantes por aí, como o BAFTA. E o que isso tem a ver com o filme?, já que quase nunca comento as carreiras pessoais dos cineastas por aqui? Bom, se você assistir a este filme, vai notar um humor muito peculiar na forma como Theroux conversa com alguns dos personagens escolhidos.
(Por falar em ver o filme, infelizmente ainda não está circulando no mercado paralelo — bora MakingOff! — e nem é possível acessar via BBC iPlayer, a plataforma oficial dos britânicos. Porém, uma boa alma postou o filme inteirinho no falecido Twitter. Como nem tudo pode ser tão bom assim, só está disponível com os textos em inglês. Porém, como se vê, ainda há resquícios de humanidade por lá…)
Dito isso: The Settlers é, num resumo bem sucinto (e me perdoem a redundância), um retrato cru e lamentável da questão colonial sionista através, principalmente, do movimento de colonos liderado por Daniela Weiss - certamente uma das pessoas mais sádicas que já vi num documentário.
Cru, pois nenhum colono entrevistado, e muito menos Weiss, que é chamada carinhosa e diabolicamente de madrinha dos colonos, sente remorso ou sequer reflete de verdade sobre os atos perpetrados contra a população palestina. Pior: nenhum colono, e com grande influência de Weiss, sequer reconhece a população palestina como formada por seres humanos, que têm direitos e deveres como qualquer outra pessoa deveria ter num Estado democrático1. Essa visão deturpada da realidade2, baseada no direito divino que os judeus sionistas alegam deter sobre o território palestino, é a raiz do problema sionista, já que dá as bases de todos os processos de violência aos quais palestinos e palestinas estão submetidos: o policial, o judiciário, o racial, o psicológico etc. — mas, primordialmente, o processo de violência colonial, intrínseco à própria situação da colonialidade (afinal, é impossível levar a cabo um projeto de conquista territorial sem, em algum momento, ter que lidar com a população autóctone; essa lógica está irônica e cinicamente materializada no slogan que os sionistas adotaram para o movimento, uma terra sem povo para um povo sem terra).
Lamentável porque, a despeito de se mostrarem tranquilos e serenos, os colonos, e principalmente Weiss, que detém um poder descomunal dentro do movimento e da política israelense, não sofrerão nenhuma represália, seja do próprio Estado, seja dos organismos internacionais. Nem hoje, frente ao genocídio mais explícito, nem no passado, nem no futuro — pelo menos não enquanto houver sionismo como forma e ideologia do Estado israelense. É impossível que um etno-Estado fascista responsabilize pessoas que levam à frente a própria ideia deste etno-Estado fascista, através de ações diretas de intimidações, expulsões, agressões e assassinatos. O sentimento exclusivista dos colonos é naturalizado e incentivado, principalmente através do mito da terra prometida e por pessoas como Itamar Ben-Gvir3, que até pouco tempo era Ministro da Segurança Nacional de Israel e sempre participa de eventos de colonos como o registrado por Theroux em The Settlers.
Este sentimento é tão difundido que se materializa na fala de um dos colonos entrevistados (e aqui pouco importa o nome dessas pessoas, exceto o de Daniela Weiss, que se orgulha de seu papel de líder do movimento) que ecoa Golda Meir, outra madrinha do sionismo: eles não creem existir algo como o povo palestino. A desumanização dessas pessoas faz com que colonos e Weiss possam tranquilamente dizer coisas como “eu não vejo isso [e aponta para as vastas terras] como Palestina; não existe Palestina, é Judeia e Samaria” ou “eu não me preocupo com árabes, eu sou judia; não penso em árabes”. Weiss chega a apontar para algumas porções de terra: seu único pensamento é saber onde é possível trabalhar a terra e onde não é possível fazer nada. Seu pensamento não está nos palestinos e nas palestinas porque, no fundo, essas pessoas não fazem parte de seu vislumbramento do mundo; elas não existem enquanto conceito, não são seres humanos, e é por isso que, apesar de insistentemente a madrinha dos colonos dizer que não, é tão fácil clamar pela aniquilação palestina. É por isso, também, que uma simples colheita de olivas se transforma num evento militar grotesco, que impõe aos agricultores humilhações constantes e cotidianas em tarefas tão banais quanto buscar comida ou arar a terra.
É o capital (de novo)
Eles não nos veem como seres humanos iguais que merecem os mesmos direitos que eles
Eles, é claro, são os sionistas, e é assim que Issa Amro, um palestino militante que guia Theroux por Hebron, resume a questão que atravessa sua vida desde o nascimento. Diferentemente dos militares que fazem divisa com sua casa, ele pertence a Hebron. E é nesta cidade que fica mais explícito como o capital funciona como braço amigo (e armado) do projeto colonial sionista (já falei disso por aqui outra vez, certo?).
Antes, vejamos o que Weiss diz brevemente sobre sua relação com a Cisjordânia, ao recordar brevemente sua história numa conversa com Theroux:
Meus pais vieram para cá e investiram fortunas, acreditando que, um dia, haveria um Estado judeu
O grifo é meu, pois é muito importante entender como esse sonho molhado colonialista se materializou: através de fortes incentivos à imigração de judeus espalhados mundo afora, vivendo em diáspora, uma característica que eles acreditam ser fundante de sua própria judaicidade (apesar de não ser exatamente assim) e que, por isso mesmo, justificaria o retorno à terra prometida (sabe-se lá por quem, já que também não é bem assim) (Sand, 2011). O empreendimento colonial precisa ser integrado ao capital; é por isso que Weiss fala de Gaza devastada como uma oportunidade imobiliária (e, claro, de criação de novos assentamentos): é possível, além de reafirmar a identidade judaica, ganhar dinheiro, muito dinheiro, com a colonização total do território.
Não é à toa, então, que Amro aponta um cartaz pregado na parte palestina de Hebron, uma cidade que usa os famosos checkpoints como ferramentas de segregação espacial urbana:
O cartaz materializa na porta de uma loja palestina fechada pelas FDI a forma como sionistas enxergam os palestinos: são todos, sem exceção, terroristas. Não há nenhuma nuance, nem distinção etária ou de gênero: mulheres são parideiras de pequenos militantes, e estes pequenos militantes são futuros terroristas que ameaçam o espaço sionista: é preciso, também, evitar o comércio dessas não-pessoas ardilosas; é preciso evitar qualquer possibilidade de manifestação de vida.
Para o siosnimo, é preciso, é um dever, por fim, e evocando Judith Butler (2017), garantir a escolha de com quem se vai habitar o planeta — e os palestinos e as palestinas definitivamente não são uma das opções viáveis dessa escolha.
Referências bibliográficas
Butler, Judith. Caminhos divergentes. Judaicidade e sionismo. São Paulo: Boitempo, 2017.
Sand, Shlomo. A invenção do povo judeu. São Paulo: Benvirá, 2011.
Israel é tratada como a "única democracia do Oriente Médio". Isso está presente em discursos oficiais e midiáticos. Contudo, é um tanto óbvio que democracia e etno-nacionalismo não costumam andar juntos — ou, ao menos, não costumam dar bons frutos.
Essa visão deturpada atinge níveis irracionais, como numa espécie de crítica (que não vou linkar aqui, mas é facilmente encontrada numa busca rápida) feita ao documentário por Eitan Oren, um acadêmico que, tal qual Ross Geller, parece gostar muito de se apresentar ao mundo com seu epíteto “doutor” — pelo menos é assim que ele assina seu texto contra o filme de Theroux. Oren, orgulhosamente nascido e criado em um assentamento sionista, afirma categoricamente que a minoria dos colonos tem para com palestinos um sentimento de ódio — a despeito do que demonstrem gráficos como este, da al Jazeera, que mostra que, desde 2023, acontecem quatro ataques de colonos sionistas na Cisjordânia por dia. Oren também enfatiza que é dever do jornalismo ouvir sempre os dois lados, e que Therous deveria ter escolhido melhor suas fontes, pois ficou preso a, supostamente, uma minoria extremista — neste caso, é só ignorância mesmo, já que um documentário, por mais que esteja exibido num canal de televisão, antes de tudo é uma narrativa audiovisual, e o diretor tem o poder e o dever de escolher quem bem entender relevante para sua obra. Sobre o tema violência de colonos, deixo um bom artigo da Armed Conflict Location & Event Data (ACLED), com mais seriedade que um simples post de um sionista colono orgulhoso da Cisjordânia.
Ben-Gvir é um dos mais esforçados sionistas de nossos tempos. Ele mesmo um colono na Cisjordânia, não se cansa de incentivar a limpeza étnica e o genocídio do povo palestino. Sua demissão do cargo que ocupava no governo de Benjamin Netanyahu se deveu pois discordava irremediavelmente da possibilidade de um cessar-fogo entre o Hamas e o governo israelense e a troca de reféns entre os dois (me recuso a chamar palestinos de prisioneiros de uma forma abstrata): seu desejo era a aniquilação e a expulsão total de palestinos e palestinas do território de Israel, Gaza e Cisjordânia. Contudo, com a retomada dos incessantes ataques sionistas à Faixa de Gaza, o partido de Ben-Gvir, Otzma Yehudit, retornou à coalizão de apoio a Netanyahu e ao Likud — como se vê, Ben-Gvir não disfarça seu gosto pelo sangue do povo palestino.