Joguei The Last of Us até onde consegui: fiquei preso naquela sequência em que o Joel precisa chegar numa casa no centro da vila pra salvar todo mundo. Precisava me esgueirar por entre cercas, arbustos e diversas casas abandonadas e, de vez em quando, trocar socos e tiros com seres humanos que — UAU! — são piores que os aterrorizantes zumbis (e realmente os zumbis de TLoU são sensacionais; na minha singelíssima opinião, tão bons quanto os do clássico Resident Evil, jogo que eu parei de jogar porque tinha um bocado de medo quando era criança…). Toda vez que iniciava o jogo nessa parte me batia uma preguiça enorme de continuar a jornada de Joel & Ellie, daí desligava; foi juntando outras coisas da vida, e por fim o jogo e o videogame foram ficando cada vez mais escanteados em cima do móvel do quarto, juntando poeira.
(Aliás, quem quiser um PS4 Pro, tô vendendo).
No entanto, eu gostava muito de TLoU. Muito mesmo. O fato de Neil Druckmann ser um sionista dos mais escrotos diminuiu drasticamente meu entusiasmo com o jogo e a série, que estou acompanhando (e talvez por isso mesmo sem muita empolgação — ou talvez seja porque ela é meio fraquinha mesmo, mas vamos chegar lá). Eu não separo autor de obra: somos frutos do que fazemos e pensamos. Mas eu não deixo de ver, ouvir, ler ou fazer qualquer coisa porque fulano é assim ou assado. Se fosse assim, uns 80% do que faço aqui no A Contrapelo sequer existira, porque chafurdar no lamaçal do sionismo é essencial pro meu “trabalho” aqui. De toda forma, saber que Druckmann acredita piamente que seu povo está sendo sistematicamente massacrado por animais irracionais, enquanto a realidade mostra que talvez ele esteja se olhando num grande e empenado espelho, é decepcionante.
Sendo assim, e fazendo jus à razão de existir do último post de cada mês, indico dois textos pra entender um pouco mais sobre Druckmann, sionismo e TLoU. O primeiro é esse aqui, The Not So Hidden Israeli Politics of ‘The Last of Us Part II’, focado no, principalmente, no ciclo da violência e suas ligações com o sionismo, judaísmo etc.; o segundo, que eu gosto ainda mais, é do professor Tarek Younis, Veiling Colonial Violence: The Last of Us Part II, Israel and the Erasure of Power, que parte de uma declaração que o criador do jogo e da série (Druckmann) deu ao Washington Post quando do lançamento da parte 2 de TLoU:
A formulação para a guinada de Ellie para a escuridão pode ser rastreada até o ano 2000. Com pouco mais de 20 anos, Druckmann testemunhou imagens de uma multidão linchando dois soldados israelenses na Cisjordânia. “E então eles aplaudiram depois”, lembra Druckmann, que cresceu em Israel. “Foi a aclamação que foi realmente arrepiante para mim. [...] Na minha mente, eu pensava: “Nossa, se eu pudesse apertar um botão e matar todas essas pessoas que cometeram esse ato horrível, eu as faria sentir a mesma dor que infligiram a essas pessoas.”
O grifo é meu, e a citação vem do artigo de Younis — e tem uma segunda parte em que Druckmann deixa explícito seu desejo de expurgar, através do jogo, seu sentimento ruim em relação aos palestinos da Segunda Intifada. Em resumo, se ainda não ficou claro: Druckmann, de certa forma, sabe que não curte muito essa moçada que vive no mesmo território onde ele cresceu — aquele lugar da única democracia do Oriente Médio, terra avançada e civilizada no meio de caos, terrorismo e bandidagem; mas ele também sabe que esse sentimento não é muito bacana, digamos assim, então ele cria um jogo para exorcizar esse fantasma que o persegue desde a juventude. Assim, nasce TLoU II.
Eu não sei que rumos a série vai tomar, mas espero que, como uma boa adaptação que se preze, consiga não cair nas armadilhas que o jogo traz — pelo menos de acordo com as visões de Younis e Maiberg. Não espero muito de uma série que sequer consegue transmitir os sentimentos desejados em sequências decupadas de forma tão burocrática, como o assassinato de Joel. Aliás, e eu só consegui realmente enxergar porque a sequência em que Abby mata o Joel me incomodou depois de ver o Matheus Fiore expressando o que eu tentava dizer, é bizarro tamanho sadismo por parte da jovem ao vingar o pai frente ao sentimento de raiva. Matar o algoz do próprio pai, OK, já vimos isso inúmeras vezes e é um belíssimo motor narrativo; curtir o momento, se deliciando com a tortura, no entanto, tira todo o peso da perda de um personagem que, apesar de ser ele mesmo um assassino um tanto sanguinário, é um dos mais queridos do público e dos jogadores.
É o mesmo sadismo que me fez perder um bocado do entusiasmo em The Walking Dead quando aparece o personagem Negan. É intragável. E tenho quase certeza que humanizaram o personagem depois de ver que, na real, as pessoas simpatizavam com o vilão unidimensional que se divertia arrebentando as cabeças das pessoas “inimigas” com seu taco de baseball personalizado. Terminei de ver TWD numa tacada só (me perdoem pelo trocadilho infame) porque quando finalmente me debrucei sobre a série já estava toda disponível, mas, de fato, Negan é um personagem muito ruim que nas temporadas finais se redime através do casamento e da paternidade (aliás, é notável como todas as instituições “civilizacionais” são a única garantia da funcionalidade social em TWD: a família, a igreja, a polícia… mas isso é papo pra outro texto, talvez).
Por fim, e aproveitando que trouxe Walking Dead pra conversa, espero que Ellie & Cia. não sejam levadas pro mesmo lugar que a clássica história de zumbis da AMC, qual seja: de determinar com quem desejam compartilhar o mundo num contexto apocalíptico. Seria, contudo, muito conveniente que essa seja justamente a solução da série, considerando a ideologia de seu criador.
Voltando às questões palestinas…
Por falar em sionismo, deixo aqui uma dica de leitura que é um tanto esclarecedora sobre o tratamento médico de palestinos e palestinas no contexto da colonização israelense: Sumud em tempos de genocídio, da psiquiatra Samah Jabr. Já usei alguns trechos do livro em textos passados por aqui. O livro é uma coletânea de textos organizados por Rima Awada Zahra, e é justamente por ser um compilado de diversas épocas que ele se torna ainda mais necessário: ao ler o que Jabr escreveu nos anos 2010 e chegando até artigos pós-7 de outubro, notamos claramente as consequências distendidas no tempo da violência colonial sionista. Logo na Introdução (p. 20), a médica diz o seguinte:
[…] precisei descobrir como “tratar” indivíduos oprimidos que, soba a ocupação militar, tiveram a coesão de suas comunidades enfraquecida. A colaboração com os israelenses, a desconfiança generalizada entre nós e o sentimento coletivo de inferioridade e desamparo são apenas alguns dos sintomas de uma comunidade oprimida. […] Aprendi a tirar minhas próprias conclusões e a procurar soluções para traumas históricos e coletivos dentro dos indivíduos, mas, principalmente, no desenvolvimento comunitário, por meio da ação social e política.
A descoberta de Jabr (o grifo é meu) se relaciona com o que Mbembe (2018) traz em O pequeno segredo, quando relaciona os traumas que se perpetuam com a formação da identidade dos colonizados (algo que Fanon também ressalta em Peles negras, máscaras brancas, de forma ainda mais acentuada, já que investiga a formação do ser colonizado). A partir dessa descoberta, dois pontos se destacam, e são cruciais para compreender como combater a colonização:
não há solução individual para problemas coletivos; isto é, somente a organização do povo palestino e a solidariedade entre os povos, notadamente do sul global, são capazes de fazer frente à violência israelense e seu plano de aniquilação. Soluções baseadas e/ou focadas nos problemas individuais apenas acentuam desigualdades que levam toda a coletividade pro fundo do poço, agravando ainda mais a situação já deplorável em que sobrevivem os palestinos e as palestinas;
neste sentido, toda forma de resistência é válida e legítima — toda. Jabr não condena nenhum tipo de contra-ataque ao sionismo, o que não significa endossar ou incentivar a violência contra quem quer que seja. Isso é importantíssimo pois a luta palestina pela própria autodeterminação e pelo livramento da colonização sionista muitas vezes esbarra numa condenação simplória e hipócrita da violência de parte dos movimentos de resistência. Agora, é o Hamas; antes, FPLP; no futuro, quem sabe? Assim, o que restaria ao povo palestino é aceitar seu destino de expulsões forçadas e aniquilação.
Quando do lançamento do livro no Brasil, a editora Leonardo da Vinci propôs uma bela roda de conversa, que está disponível pra ver online:
E isso é tudo por hoje, pois já tem texto demais essa semana.